Monólogo A Dois

quarta-feira, julho 27, 2005

– Eu bem sei que não sou médico, nem tenho estudos nem nada, e que a fisionomia suína é bastante semelhante à dos humanos, mas não me parece que tenha sido necessário transplantar-me um braço de um porco! – disse O Aníbal, nome que obrigava todos os motoristas de táxi do Cais do Sodré a utilizarem quando lhe dirigiam a palavra.
O Doutor, nome que utilizava mas não de forma imperativa, era um homem novo, um pouco calvo e peludo no resto do corpo. Era de tal forma farta a pilosidade que lhe cobria o corpo que ao despir-se não sentia qualquer diferença de temperatura. A bata era incapaz de dissimular os extensos fios negros e ondulados, muitíssimo bem amaciados, que abundavam nos seus braços. A roupa fazia-lhe uma comichão constante e quando estava em casa andava completamente nu, sem que, no entanto, se visse qualquer pedaço de pele, pendente ou não.
A meio da discussão entre O Doutor e O Aníbal ouve-se um ritmado bater na janela do consultório. O Doutor abre-a e recebe de um pombo a sua nota de liquidação do I.R.S., trazendo-lhe a paz de espírito que lha faltara durante as últimas semanas. O Pombo tinha a receber alguns euros, uns trocados apenas, mas tudo estava finalmente regularizado.
Por sua vez, num equilíbrio quase cruel, O I.R.S. deixava para trás dois filhos e duas ex-amantes anteriores ao seu casamento homossexual. Duas pessoas assistiram ao enterro do I.R.S. no Cemitério de Benfica e uma delas era o coveiro. Foi um dia de chuva que poucos esqueceram, incluindo aqueles que não se lembram dele.
A discussão prossegue e O Doutor tenta acalmar O Aníbal segurando-lhe na pata e prescrevendo-lhe calmantes e cd’s dos Kelly Family. Lá fora, a chuva continuava a cair, cada vez com maior intensidade. Simultaneamente, ao mesmo ritmo das gotas de água, caíam apresentadoras do boletim meteorológico com o cabelo com demasiada laca. Centenas de pessoas juntaram-se na principal rotunda da cidade, sem violar o código da estrada, para mirarem este surreal cenário. Tinham bastante laca mesmo.
Enquanto todos estavam distraídos, O Porco coxo suicida-se.
Afinal, ainda era quarta-feira.
|| Æmitis @ 18:55 ...:::
A voz dele é a do Clint Eastwood, por empréstimo. A partir daqui, ele é o narrador e o ele que ele diz é outra pessoa totalmente diferente, embora com semelhanças várias.


Era precisamente meio-dia e o sol ainda não tinha aparecido, nem o sacana. As ruas estavam desertas e duas latas de milho doce rebolavam com o vento e assustavam os gatos. As latas estavam vazias, claro; não estava assim tanto vento que conseguisse fazer rebolar duas latas de milho doce cheias e fechadas. Cada uma pesa cerca de 300 gramas. Se a estrada fosse inclinada e, se por acaso, as latas estivessem sido postas de lado, podiam deslizar, mas não era o caso.
O local é este e hora também, será que se acobardou? Decerto que já acabou a luta greco-romana de sardinhas paralíticas com menos de 42 gramas; nada o detém no seu vil covil. A vingança é um pato que se come frio, como no restaurante chinês. E eu odeio chineses.
Vejo algo ao longe, o sacana! Eu disse:
– Sacana! Estás atrasado.
– Eu sei. Tropecei em duas latas de milho, tive que ir fazer um curativo ao joelho.
Este tipo de distracções são típicas de reles inergúmenos como ele. Que raio quer dizer inergúmenos? Parece legumes ou então algo que não tem gumes. E não faz lá muito sentido estar a dizê-lo... Mas não me posso distrair agora; um movimento em falso, uma hesitação ou um deslize são suficientes, num piscar de olhos fora de tempo perde-se um duelo.
– Estás preparado para encontrar a tua sepultura? – disse com um olhar ameaçador que contornava a armação dos óculos.
– Como assim?
Mais um dos seus truques. Novato. Consigo discerni-los à distância, com as suas artimanhas universitárias e artifícios estagiários. Metem-me nojo. Mas hoje não terei clemência.
Num movimento só, agarro-o pelo pescoço com o braço direito, exercendo exactamente a quantidade de força necessária para o sufocar sem lhe destruir traqueia. Tiro a minha Parker Duofold® do bolso da camisa e encosto-a ao seu olho esquerdo.
– Vês? Consegues ver isto?
Ele tremia incontrolavelmente enquanto tentava libertar-se, agarrando-me com as duas mãos o braço que lhe apertava a garganta. Não conseguia responder, apenas saiam uns gargarejos imperceptíveis, talvez já ensanguentados.
– Lembra-te bem deste meu braço e da dor que sentes na garganta na próxima vez que usares uma sórdida esferográfica bic® no escritório.
Soltei-o. Ele ficou prostrado no chão tossindo e chorando convulsivamente.
– Bem vindo ao mundo da Contabilidade Administrativa. – disse-lhe enquanto me afastava triunfante, com o pôr-do-sol, mas sem sol.
|| Æmitis @ 03:23 ...:::